A segurança jurídica como fundamento para a manutenção da pensão à filha solteira

*Rafael de Moura Campos é Advogado e Professor de Direito

*Carolina de Moura Campos é Advogada.

Temos visto, a pretexto da instauração de processo administrativo com o único e exclusivo fim de cassação de pensão por morte deixada à filha solteira, inúmeras ilegalidades e arbitrariedades cometidas pelos entes previdenciários, especificamente a SPPREV – São Paulo Previdência, órgão previdenciário do Estado de São Paulo.

É sabido que legislações previdenciárias passadas, tais como as Leis 4832/58 180/78 do Estado de São Paulo, previam a hipótese de concessão da pensão por morte à filha solteira do servidor falecido, nos seguintes termos:

Artigo 11 da Lei 4832/58: São beneficiários obrigatórios:

  1. a) – o cônjuge sobrevivente;
  2. b) – os filhos varões incapazes ou inválidos;
  3. c) – as filhas solteiras;
  4. d) – as filhas viúvas, que vivam sob a exclusiva dependência econômica do inscrito.
  • 3° – A pensão atribuída ao incapaz ou inválido será devida, enquanto durar a incapacidade ou invalidez, e a solteira ou viúva, até o casamento.

Artigo 147 da Lei 180/78: São beneficiários obrigatórios do contribuinte:

I – o cônjuge sobrevivente;

II – os filhos incapazes e os inválidos, de qualquer condição ou sexo e as filhas solteiras;

III – os pais do contribuinte solteiro, viúvo, separado judicialmente ou divorciado, desde que vivam sob sua dependência econômica, mesmo quando não exclusiva, e não existam outros beneficiários obrigatórios ou instituídos nos termos do artigo 152.

  • 1º – Os filhos legitimados, os naturais e os reconhecidos equiparam-se aos legítimos.
  • 2º – Atingindo o filho beneficiário a idade de 21 (vinte e um) anos, ou a de 25 (vinte e cinco) anos se estiver frequentando curso de nível superior, cessa o seu direito à pensão.
  • 3º – A pensão atribuída ao incapaz ou inválido será devida enquanto durar a incapacidade ou invalidez e à filha solteira até o casamento.

Tais legislações, ainda que não estejam mais em vigor, foram elaboradas sob o manto da legalidade para a produção de todos os efeitos e aplicáveis a todos os fatos ocorridos durante a sua vigência.

Importante pontuar que a legislação aplicável é aquela vigente à data do óbito do segurado, em homenagem ao princípio do “tempus regit actum”.

De acordo com este princípio, os atos jurídicos deverão ser regulados pela lei vigente no momento de sua efetivação, e comumente não lhe serão aplicadas as novas regras, que lhe são posteriores.

Dispõe, outrossim, a Súmula nº. 340 do C. STJ que a lei aplicável à concessão de pensão previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado.

É cediço também o posicionamento do STF, externado no MS 21.707/DF, no sentido de que o direito à pensão é regido pela Lei vigente à época do óbito do instituidor do benefício. Assim, temos que quanto aos atos normativos, é proibido a aplicação retroativa de normas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos.

Em que pese o inconformismo da Administração, que visa preservar o Erário, é de se ressaltar que sua atuação deve se pautar pela estrita legalidade, devendo esta suportar as leis que edita. Se, como ente do Executivo, entende injustas as leis da época, que concediam pensões às filhas solteiras, deve com estas leis se conformar, pois elas foram frutos do Poder Legislativo, com o qual deve conviver numa República que se pretende democrática (ressalve-se que essas leis não foram vetadas pelo Chefe do Executivo à época).

Verifica-se assim, a absoluta validade das legislações outrora vigente, vez que sobre elas não pairavam qualquer vício de legalidade ou moralidade à época da sua vigência.

Feitas essas considerações, forçoso concluir que não cabe à SPPREV ou qualquer outro ente previdenciário desconstituir, a qualquer preço, a pensão legalmente concedida à filha solteira.

Não é o que vem ocorrendo.

Especificamente a SPPREV (que é o órgão que administra a previdência do Estado de São Paulo) vem sistematicamente instaurando processos administrativos, totalmente despidos de legalidade, visando a da cassação das pensões recebidas pela filha solteira, pretendendo equiparar união estável a casamento para cessar benefício de pensão.

A SPPREV chega ao absurdo de cassar unilateral e preliminarmente tais pensões quando da instauração dos processos administrativos, sob a alegação de que a investigação efetuada pelo órgão concluiu pela existência de relacionamento equiparável ao casamento. No estilo “você é culpada até que se prove o contrário”, como se estivéssemos em tempos de exceção, e não mais em um Estado Democrático de Direito.

De fato, não pode a Administração Pública pretender suspender de forma abrupta e unilateral o benefício concedido à apelada, visto que qualquer que seja o procedimento instaurado seja na esfera administrativa, civil ou penal quando passível de acarretar danos à parte contrária, tem de ser submetido ao crivo do exame do contraditório para a melhor análise do direito, sendo certo que a condenação sumária, sem a prévia possibilidade de defesa, acaba por transportar o atual Estado Democrático de Direito para tempos pretéritos, ao do Estado de Polícia.

Se a alteração do estado civil da beneficiária da pensão fosse realmente o intuito do órgão, porque não a propositura de ação judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa às partes? Não. Pretende o órgão previdenciário uma odiosa inversão de valores, pois é ela que deveria provar que a então beneficiária não faria jus à pensão.

A Administração cria hipótese de cessação de benefício sem qualquer amparo legal. As legislações previdenciárias vigentes à época da instituição do benefício previam tão somente a extinção em razão da celebração de novo casamento, sendo impossível a realização de interpretação extensiva.

Há duas regras de hermenêutica que impedem isso: Se a lei não distingue, não pode o intérprete distingui-la, e que toda regra de exceção deve ser interpretada de modo restritivo.

Se é verdade que o então concubinato equivalia à atual união estável, a norma vigente na época da concessão dos benefícios, deveria ter previsto a hipótese de cessação por “concubinato”. Não o fez.

E não é só. Viola a Administração o direito adquirido (líquido, certo e incontestável) ao dar eficácia retroativa de lei posterior mais restritiva, afrontando a norma do art. 5º, XXXVI, Constituição da República: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito a coisa julgada.

Há também a impossibilidade de revisão dos atos administrativos pela prescrição, na exata redação da norma do art. 10, I, Lei Estadual n. 10.177/98. Isto porque a desconstituição dos efeitos de atos administrativos já realizados há vários anos (mais de dez anos), fere a razoabilidade que cristalizou a realização dos atos.

A ilegalidade do ato demonstra-se também pela violação aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos no Direito. O transcurso do tempo como fator de segurança jurídica, revela a necessidade de se preservar e estabilizar as relações dos indivíduos com o Estado.

Felizmente, nossos Tribunais têm entendimento diverso ao da Administração, o que vem culminando com a procedência de diversas ações judiciais para o imediato restabelecimento da pensão a que faz jus a filha solteira do servidor público falecido.

Dentre essas decisões, uma em especial teve grande repercussão ao determinar o restabelecimento de pensão, o que também vem acontecendo em vários outros casos sob os cuidados deste Escritório.

MANDADO DE SEGURANÇA. Suspensão do pagamento de pensão por morte, recebida na qualidade de filha solteira pela impetrante, em razão da celebração de contrato de união estável. Afastada a preliminar de ausência de direito líquido e certo. Legitimidade recursal da Fazenda Pública Estadual – Reconhecimento – Relatoria vencida nesta parte, pois a maioria entende pela ilegitimidade recursal da FESP, não conhecendo do recurso. Direito adquirido ao recebimento da pensão por morte de seus genitores. Inexistência. Benefício sujeito a condição resolutiva. Violação dos princípios da segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos na ordem jurídica (artigo 1º da CRFB). Realização de interpretação restritiva das normas que preveem a perda de direito ou interesse juridicamente garantido. Impossibilidade de interpretação extensiva de normas de exceção. Regra fundamental de hermenêutica jurídica. Aplicação da norma vigente à época da constituição da união estável. Manutenção da sentença, alterados os seus fundamentos jurídicos. Recurso voluntário não conhecido, vencido o relator em questão preliminar, desprovido o recurso oficial. (Apelação n° 0011163-66.2010.8.26.0053, Rel. Des. Peiretti de Godoy, j. 23.11.2011)

 

Outra decisão que merece ser citada é a proferida nos autos da Apelação nº 1016988-66.2013.8.26.0053 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Ação ordinária. Apelação. Pensão por morte. Cassação do benefício à filha solteira de policial militar falecido. Inadmissibilidade. União estável não comprovada. Ausência de provas. Desrespeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa. Afastada presunção de legalidade e veracidade de ato administrativo. Sentença de procedência da demanda com afastamento da prescrição. Recurso parcialmente provido, para aplicação da Lei 9.494/97, afastando a aplicação da Lei 11.960/09. (Apelação n° 1016988-66.2013.8.26.0053, Rel. Des. Marcelo L Theodósio, j. 16.09.2014)

Assim, não resta outra alternativa ao cidadão de bem, que teve sua pensão ilegalmente cassada, socorrer-se do Poder Judiciário para repelir a ilegal intenção do Estado, a qual tem como pano de fundo meramente a questão econômica, e não como deveria ser a jurídica.

É a nossa opinião.