Os novos termos contratuais determinados pelo coronavírus

*Sidney Vida é Advogado e Professor de Direito

Em relação ao novo coronavírus (ou Covid-19), a única certeza que temos é a incerteza que ele trouxe à vida de todos nós. Um desordenamento que está no cotidiano, criado pela necessidade do isolamento, mas que também chegou aos governos, que, com raras exceções, não sabem bem o que fazer diante da pandemia.

É evidente que a pandemia traz dúvidas ao nosso sistema de normas de condutas e princípios.

Por causa desse surto, vivemos em estado de calamidade pública válido até 31 de dezembro do ano corrente, o que abre uma brecha para corrupção, pois permite que o Poder Executivo gaste mais do que o previsto e desobedeça às metas fiscais para custear ações de combate à pandemia. Só para ficarmos num ponto extremamente sensível, de acordo com o artigo 24, inciso IV, da Lei n. 8.666/1993, está permitida a dispensa de licitação para aquisição de bens a serem usados na situação que ensejou a decretação da calamidade. O vírus trouxe poderes ditatoriais aos governantes, que passaram a legislar por decretos sob o flagelo atual.

Além disso, no direito empresarial, há a incerteza com relação aos contratos porque, embora ainda não exista uma estatística confiável, é certo que milhares deles, firmados antes do aparecimento do vírus, não serão honrados. Para a maioria das empresas isso acontecerá porque o exercício das suas atividades empresariais está comprometido. Como se manter em dia com seus deveres quando o fluxo de caixa despencou repentinamente até chegar ao zero? Uma parte das empresas sobreviverá com muitas dificuldades, já outro grupo será irremediavelmente destruído. Perderam a condição para competir.

A inadimplência (em caso financeiro) ou o impedimento da realização de cláusulas contratuais de outra natureza podem ser consideradas de força maior ou onerosidade excessiva. É o “rebus sic stantibus”, ou teoria da imprevisão, a exceção ao princípio da força obrigatória ou da intangibilidade dos contratos.

Claro que a pandemia ou a calamidade pública não serve para descartar o “pacta sunt servanda”, o princípio de que os acordos devem ser observados. Mas, se judicializado, dependerá do empirismo de cada juiz.

O Brasil conhecerá agora um período de grande contencioso, no qual o Poder Judiciário terá que julgar e arbitrar os conflitos inevitáveis. A ação dos advogados nunca foi tão necessária para a preservação do patrimônio e mesmo da própria existência empresarial.

A crise financeira de 2008, detonada pela quebra do banco Lehman Brothers, foi a fagulha que iniciou uma reação em cadeia e que transformou a ação dos bancos centrais e dos governantes diante da moeda. O colapso só não aconteceu por causa da habilidade das autoridades em lidar com a difícil questão da liquidez sistêmica. Os contratos empresariais também interagem em cadeia porque cada empresa possui dezenas (ou centenas, dependendo do seu tamanho e estrutura) deles e o não cumprimento de um pode gerar reação que passa de uma companhia para outra.

A questão da liquidez é agora superlativa porque a interrupção das vendas fez evaporar as reservas financeiras de grande parte das empresas, grandes e pequenas. Mesmo as empresas exportadoras estão padecendo porque no nível mundial está havendo forte recessão, que determinou a espetacular depreciação do petróleo.

Trata-se de risco a um princípio fundamental do direito empresarial nos contratos: o de que vale o que está escrito, como reza o dito popular do Brasil, ou o de que não precisa sequer estar no papel — princípio válido em países como o Reino Unido, em que as normas e leis são fundamentadas na tradição e no common law, o bom senso.

A Lei n. 13.874/2019, chamada de Lei da Liberdade Econômica, colocou no ordenamento jurídico nacional algumas determinações para o livre exercício da atividade empresarial. Um deles, incluído no Código Civil, é o artigo 421-A, que no inciso III fala de revisão de contratos, mas esta “somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”. O que está escrito só vale, contudo, quando os meios materiais para sua execução existem.

Mesmo antes da redação dada pela Lei da Liberdade Econômica, o artigo 393 do Código Civil já dizia que o “devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. E o parágrafo único reza que o “caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”

Está colocada à mesa a condição que pode implantar uma desordem econômica que vai afetar contratos e, consequentemente, toda a cadeia produtiva e o direito empresarial que a rege.

Sempre deveria valer, em casos imprevisíveis assim, o common law britânico, o bom senso de procurar uma renegociação e um acordo. But — como os americanos costumam dizer — it takes two to tango. É preciso ficar bom para todas as partes — o que, em caso de desespero financeiro, e de aflições particulares, pode não ser fácil.

É evidente que a parte que deseja rever ou encerrar o contrato deve produzir provas para mostrar que os impactos do coronavírus tornaram impossível honrar o compromisso e não tem outra possibilidade de fazê-lo.

No momento, é imprevisível prever as próximas semanas, que dirá os próximos meses. O que é problemático porque, para que o direito empresarial desempenhe sua função de preservar as leis, os contratos e a saúde financeira de empresas, é preciso estabilidade. Algo que não se encontra nem mesmo na vida pessoal, que dirá na profissional.